31/12/15

DÚVIDA DESEXISTENCIAL



Entre a capela do Senhor da Pedra

e o Cabedelo

já não sei onde ficar

dormindo para sempre


Pouco importa


É sempre o mar


É sempre o mesmo caminho

rumo à boca profunda do sonho

buscando o delírio


e a meiguice da espuma das ondas



17/07/15

ÚLTIMO ACENO


Em memória do José Rogério Mineiro Carrola


Disseram-me que estavas para a praia
enquanto eu caminhava para o inferno


Foste para a praia grande sozinho
ou de mãos dadas com o vento ?


Eu estou indo a caminho do azul
lá para os lados do Cabedelo


Que língua de areia tão bela a do Cabedelo
lambendo os lábios do Atlântico


Nos braços do Cabedelo quero morrer
olhando a Foz do meu Porto e
erguendo um Côte du Rhone à nossa


Até sempre, companheiro de lutas e delírios


(Paris 03.03.2014, derradeiro aceno a um grande e querido amigo)


António Barbosa Topa


13/07/15

DELÍRIO



Cruzámo-nos por acaso
junto ao Sena perto da Pont Mirabeau


Ela vinha de Cuzco trazia um chapéu
e só falava quechua


Eu vinha da Ribeira lá para os lados do Porto
trazia nos olhos o nevoeiro
e no bolso um seixo
liso redondo quase pérola
e só falava Porto


Começou a nevar
e pouco a pouco o Sena (foi em Maio)
era só um risco quase azul
entre alvos lençóis
onde um fio de sangue
denso puro e virgem
desenhou uma águia andina
rompendo a neblina da Afurada
espetando os dedos nos olhos do sono


António Barbosa Topa

(Antologia Aurora de Poetas - Poetas Somos - Ediçao Campo das Letras)



26/06/15

Poema para L



És o poema que queria meu
para nele inscrever sonhos e quimeras


Nos teus cabelos
poria um pedaço de lua-cheia


Na tua fronte
desenharia um mar calmo em fogo


Nos teus olhos
teceria um ramo de estrelas candentes


Na tua boca
pescaria peixes dos mares do sul


No teu pescoço
enrolaria um colar de pérolas azuis


Nos teus seios
espalharia âmbar mel e cânfora


No teu ventre
desenharia um arco-íris de mil cores
para depor o meu rosto
entre as tuas coxas e ser barco sem governo
procurando o porto e o delírio


Para me colar e escorar em ti


Para me afundar dentro de ti


(Traduzido do francês por Dominique Dabo,
professor de português em Dakar; publicado na revista
Latitudes, n° 14, Maio 2002)


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La Fée poème
pour L.


Tu es le poème
que je voudrais mien
pour y inscrire
des mots des chimères
des rêves insolites


Sur tes cheveux
je déposerais
un morceau de pleine lune


Sur ton front
je dessinerais
une mer calme en feu


Sur tes yeux
je tresserais
des poissons des mers du sud


Sur ton cou
j'enfilerais
un collier de perles bleues


Sur tes seins
je répandrais
du miel et de l'ambre


Sur ton ventre
je peignerais
un arc-en-ciel de mille couleurs


Pour pouvoir reposer
ma tête entre tes jambes
être un bateau à la dérive
cherchant un port et le délire


Pour me coller
et me caler contre toi
pour me couler au fond de toi



(17.10.1996 - Revista Latitudes n° 1, Setembro 1997)


25/06/15

Equilíbrio


Todo o olhar é claro
levemente azul
despido e só que és
frente ao mar
e ao mundo


branco e puro
se apertas mãos
se trincas lábios


imenso és
quando amas
como imensa
longamente calma
é a mesa
onde o pão e o vinho está

(Em "O Fio da Palavra",

Edicões ACAP 77 - 1993)


24/06/15

Prece a Nossa Senhora dos Amantes


Deito-me
e levanto-me contigo
mas acordo embrulhado
nos frios lençóis da saudade


Nossa senhora dos amantes
traz de volta a minha amada
que nao quero morrer assim
esfarrapado de saudades


Morrer por morrer
que seja colado a ela
como se fora um veleiro
sumindo-se na linha do horizonte
devagar devagarinho
de braço dado com o sol



(Julho 2000 - Publicado na revista Latitudes, n° 14, Maio 2002)



23/06/15

Regresso


De Orly
partem os navios
que se aconchegam
no sonho
e adormecem
nos lábios do delírio


Em Orly
as janelas abrem-se
sobre o azul
e é lícito
debruçar-se
sobre o mar


À Portela
chegam chegando
pesados comboios
de sono e medo
carregados dos cheiros
dos domingos de partida


Em Campanhã
ou nas Devesas
nas lágrimas do adeus
acaba o sonho
começa o mar
e o sono


quando
numa só lágrima
o Atlântico inunda
o boulevard Saint Michel
e a Ribeira

(Em " O Fio da Palavra",

Edições ACAP 77, 1993)



22/06/15

RECADO PARA UM JOVEM DA MINHA RUA

Caminhas triste indeciso e revoltado
Pelos trilhos sinuosos e ásperos da vida
Sem saber quando o teu veleiro de fogo
Chegará triunfante e imponente ao porto


Na tua pura intensa e breve existência
Foram já tantas e muitas as revoltas
Contra o que julgaste serem tempestades
Injustiças atropelos e sonhos por sonhar


Ainda tens pela frente muito Cabo Bojador
Por isso nunca claudiques segue em frente
Enfrentando ideias homens ventos e marés


Quando dobrares então a esquina do sono
Encontrarás deslumbrado uma enseada amena
Uma terra estranhamente azul intensa e pura


Aqui meu amigo termina e começa a viagem
Chegaste à terra onde o sono enlouquece
Bissectriz onde o silêncio e a bruma se enleiam


Atraca então o teu veleiro aos lábios do delírio
E espera que a lua se acoite nos braços do sol
Descobrirás que a vida é sempre conto por contar
Mar intenso azul e puro viagem a acontecer



(Revista Latitudes, n° 23, Abril 2005)



17/06/15

O 18




Adeus adeus
que não tenho pressa
vou no eléctrico
com a minha amada
até à Foz

Deixem-me estar
assim
debruçado
sobre
o sonho
saboreando
o sal
o sol
o mar
os olhos
da minha amada
onde me perco
e renasço

Adeus adeus
deixem-me estar assim
que não tenho pressa
quero adormecer
para sempre
contemplando
o mar
dos olhos
da minha amada

Mão na mão
desafiando a cidade
os vizinhos
e o sono
vamos no 18
até à Foz

E o eléctrico
é já
um navio de bruma
que resiste
a todas as marés
e
sonolento
desliza
para os lábios do delirio

Quando chegou
ao fim da linha
o 18 não parou
entrou mar adentro

Nao sabia
o eléctrico
por quão triste
estava o mar
naquela tarde
em Fevereiro
as ondas
do mar da Foz
eram
só lágrimas
e sal
porque nunca houvera
visto
uns olhos
tão de bruma
e sol
e sonho